quinta-feira, julho 24, 2008

7.04 - Short Cuts

[ Short Cuts ]


ou antropocomunicobloguismo.

Avenida Antonio Carlos.

Bem na minha frente um cartaz pregado: "Compre o cartão retornável BH BUs por apenas 6,30 em qualquer linha de ônibus". Estava eu de pé lá pelas 6 e pouco da noite num ônibus que cruza a cidade. Agora, semanas depois, nem lembro de como era o rosto dela, lembro que era baixinha, e feia, coitada, como ela mesma fez questão de acentuar. Ela entrou mais ou menos três pontos depois do meu. Eu, ouvindo música no fone de ouvido, quase não escutei quando ela decidiu falar algo.

- Que horas que já é?
- 6:40 - respondi sem tirar o fone do ouvido, querendo muito que aquela conversa terminasse ali.

Não terminou.

- Cartão BH Bus... olha que coisa boa... só 6,30, cê viu?

Não achei que fosse preciso responder.

- 6,30... quantas passagens que dá isso?

Para diminuir em alguns segundos a conta dela eu resolvi falar?

- Três.

O maior erro da minha noite. Ela simplesmente decidiu que eu estava definitivamente conversando com ela.

- Onde que compra será?

Voltei a olhar para o cartaz: "em qualquer linha de ônibus".

- Não sei.

Segundo maior erro da noite.

- Sabe sim! Nunca fala pras pessoas que você não sabe. Sempre que alguém te perguntar, você tem que falar que sabe, mesmo se não souber.
- Mas eu falei isso porque eu não sei.
- Ué. Pega ônibus todo dia e não sabe?
- Eu não pego ônibus todo dia não.
- Ah, é daqueles que tem carro, né.
- Não. Eu moro perto da faculdade, só to indo pra casa de um amigo.

Terceiro erro.

- Ah... - ela se resignou.
- Pergunta pro trocador - eu sugeri.
- Eu não! Esses trocador sem vergonha. Só fica falando da vida dos outros. Não gosto desse povo não...

Imaginei que a conversa tinha acabado. Tanto que até esse momento eu ainda estava com os dois fones de ouvido. No intervalo entre uma música e outra, que é quando o usuário do fone de ouvido tem algum contato com o som ambiente, ouvi um pedaço de frase.

- ... parece demais com ele.
- O que?
- Você é a cara dele, olha que coisa engraçada.
- hm...
- Ele tem esse olho de peixe igual ao seu.
- hm... (querendo muito que aquela conversa terminasse ali: velocidade 2)
- Ele e o irmão dele. Os dois ficam fazendo pouco caso ni mim. Mas um dia eles vão ver.
- hm...
- Ele só gosta de moça branca e loira, não gosta de morena baixinha igual eu não. Tá vendo aquela moça ali? É bem do tipo de mulher que ele gosta.
- hm...
- E pelo jeito cê também gostou né! To vendo pela sua cara que ocê gostou! Viu? Parece demais com ele.
- hm...
- Um dia ele vai ver. Vo vestir uma calça jeans nova e uma blusa de seda que a Maria me deu e ele vai ver só, vo judiar dele. Tanto que ele pode até mudar pra europa e ficar com as branquelas dele que vai lembrar de mim pra onde for.
- hm... (querendo muito que aquela conversa terminasse ali: velocidade 3)

Viaduto perto da rodoviária. Engarrafamento

- Pior que cê parece com ele demais, ele não é seu parente não?
- Como que é o nome dele?
- É Mauro. E o irmão dele é [algo parecido com brublleston. Nota do Editor]. Um dia ele vai ver. Ele é desse tipo de homem que a mulher tem que ficar sempre bonita, bem-cuidada. Se eu fosse mulher dele eu ia andar só com o cabelo arrumado, unha feita. Porque a verdade é essa, menino. Esses homem não quer saber de nada não, eles faz sacanagem mesmo com as mulheres, eles só querem o bem-bom, por isso que eu, eu sou mais eu, não tenho que ficar correndo atrás de homem não. Homem só faz a gente sofrer... Eu acho assim, menino, que mulher tem que se cuidar [próxima meia hora: frases mais ou menos iguais sobre como os homens são de marte e as mulheres são de vênus...] cê não acha, menino? Cê não acha que eu to certa?
- Acho.
- E mesmo se não achasse eu sei que eu to certa.
- hm... (querendo muito que aquela conversa terminasse ali: velocidade 4)

Rua Curitiba.

- Você que é jovem que é bom. Se eu fosse jovem eu ia namorar demais. Não to falando de ir pro motel nao, mas de ficar junto, de conversar... isso que é bom. Agora eu, com 34 anos, até que eu to bem também, menino.
- hm...
- Porque assim, cê tá indo pra casa do seu amigo, vocês que são jovens que tem que se divertir mesmo. Homem tem que ser assim mesmo. Ele vai te chamar pra sair e você vai querer ir, gastar dinheiro, não é?
- hm... é...
- É, ue! A vida é assim! [grande sabedoria... Nota do Editor] Você ainda tá na escola e...
- Não, eu to na faculdade já.
- Ah! É? Que coisa booaa! Cê estuda é no Uni, né?
- Não, na UFMG.
- Nóó! Que coisa boooaa! Cê faz é o que?
- Jornalismo!
- Tem uma menina que faz yoga comigo que faz é isso aí também. Ela é morena, alta, do tipo que você e o Mauro gostam.
- hm...

Avenida Amazonas.

- A casa do seu amigo deve estar chegando né.
- Eu desço depois da praça Raul Soares.
- Aaah, tem uma amiga minha que mora lá. Amiga minha assim... eu trabalho pra ela. Ela chama Márcia. Eu dormia na casa dela mas agora não to dormindo mais não. Eu, não, fiquei com medo. O namorado dela tem problema, ele é doente, sabe, menino? Diz que a família dele queria internar ele. Aí eu dormia lá mas um dia eu sonhei que ele tinha entrado no meu quarto e tinha passado a mão nas minhas partes íntimas [com essas palavras. Nota do Editor].
- hm... (querendo muito que aquela conversa terminasse ali: velocidade 5)
- Aí eu fiquei com medo, né, menino? A gente não sabe o que é que pode acontecer. E ela deixa a chave com ele, tenho medo, ele é doido...

Praça Raul Soares.

- É ali que ela mora, ó! Márcia que é o nome dela.
- hm...
- Eu to com saudades dela, eu falei com ela que eu posso até voltar a dormir lá, mas ela tem que deixar a chave comigo e ele não pode entrar. Ela que fez minha unha, ó!
- hm...
- Nó, menino...
- Tchau.
- Tchau, menino.

Antes de descer do ônibus sem olhar pra trás eu pude perceber o tom entristecido porém conformado em que ela proferiu essa última frase. Ela só precisava de alguém para dizer hms...

ps.: a situação teria sido bem mais legal se eu estivesse sentado no banco ouvindo toda essa "conversa", ou eu fosse a mulher que segurou as sacolas dela, ou até se eu fosse o Mauro ou a Márcia. Aí não teria o desconforto de ter que falar hms... Para todos os efeitos, enquanto ela falava eu montei uma historinha na minha cabeça. Se ela perguntasse, meu nome era Rodrigo, 22 anos, pagodeiro, micareteiro, etc... Algum assunto eu ia ter que render né... MInha vida tinha que ser mais legal do que a dela eheheh.

Dica de locadora: Short Cuts (Cenas da Vida) - Se você gosta de antologias (filmes em que várias histórias independentes são ligadas de maneiras surpreendentes, ou não) esse é altamente recomendado. O ano é 1993 e o diretor é Robert Altman. Muitas surpresas, muitas mesmo. Talvez você veja a versão picotada que passa de madrugada de vez em quando, mas a original tem 3 horas. As 8 ou 10 histórias são baseadas em contos de Raymond Carver, que inclusive eu recomendo também. Só fui reconhecer alguns contos muito tempo depois nesse filme. Um eu reconheci agora. Enfim, veja o filme.
Citação: "E foram", em Aqueles dois de Caio Fernando Abreu.
Trilha sonora: Agora ou jamais, Tigres de Bengala

11 comentários:

Ruleandson do Carmo disse...

haaaahhahaa to morrendo de rir! O melhor foi "eu ia judia" dele! Eu queria "judiá" de alguém tb! eeeehhee
PERFEITO!

Kel Sodre disse...

"Ela é morena, alta, do tipo que você e o Mauro gostam."

hahahahahahahahahahahahahhhhaahahha

Em 20 minutos de "conversa" ela já sabe seu tipo de mulher e o tipo de homem que você é! Uma sábia! Só fiquei decepcionada de saber que você é "desses", Otávio...

huahuahuahuahuahuahuahuahuahuahua

Lu disse...

hahahahahahaha [3]

Adorei o texto!!! E o pior é que isso realmente acontece.. O mais impressionante é que ela só tem 34 anos e fala como se não tivesse mais idade pra "se divertir" como os jovens.. E, como sempre, a Lei de Murphy atua colocando engarrafamentos e longos caminhos quando alguém resolve puxar papo.
Ahh... esse sonho que ela teve com o namorado da patroa foi bem Freudiano, hein? rs

sblogonoff café disse...

Nossa Otávio, você foi um pouco frio com a moça. Sei que " a cidade é perigosa, Santiago", mas de repente, intercalar uns sorrisos nos "hums" faz melhor a vida de alguém, ou apenas o dia de alguém.
Você sabe, né?! Eu adoro conversas com estranhos e descobrir suas histórias e descobrir luzes nos acontecimentos narrados. Já fiz amiguinhos nos ônibus e hoje vou ao cinema assistir Arquivo X com um cara que conheci lendo Grande sertões no ônibus. Aquele que você conheceu no Luau aqui em VV!

Eu acho legal e sou pára raio de maluco. Parece que atraio. Mas eu gosto de conversar com eles, com as pessoas. Faz parte da vida ao meu redor. É comunhão.

Estou de férias...
Ouvindo Repetition!

sblogonoff café disse...

Mas eu te entendo. Tem horas que o que a gente quer é só ficar em paz com o fone de ouvidos!

Foi engraçado seu percusso!

Fábio Freitas disse...

putz, essa mulher deve ter falado à beça mesmo, pq vc não pode ter lembrado exatamente todas as mesmas coisas que ela disse durante o tempo todo!! essa coisa de encontrar gente no ônibus contando altas histórias enquanto vc quer sossego eu conheço, só que costuma acontecer nas viagens entre Taubaté e BH. "Ela é morena, alta, do tipo que você e o Mauro gostam." realmente foi muito boa..hehehe

Otavio Cohen disse...

Fábio: algumas frases eu esqueci, mas todos os assuntos foram discutidos eheheh. e tenho certeza de ter ouvido "partes intimas" ehehhe

Lu: mto freudiano...

Michele: é claro que eu sorri durante os hums, fui super simpático, só não conseguia render assunto...

Luíza Antunes disse...

otavio semrpe se supera...
o rob que se cuide...

Gilmar Gomes disse...

mas reparando bem... acho que vc parece mesmo com o mauro... sei lá... opinião minha...

gostei do blog... parabéns.

Unknown disse...

Poxa, fiquei com tanta dó de vc enquanto lia esse texto... os minutos dentro de um ônibus são minutos de profunda introspecção. O ônibus é o melhor lugar para colocar os pensamentos em ordem.

Mas ao mesmo tempo senti uma certa simpatia pela mulher. Coitada, esse mauro deve ser mesmo um cachorro...

disse...

"Amiga minha assim... " Adorei mto!!! Não sei de quem tive mais compaixão... De vc ou dela. O ocorrido foi praticamente um experimento social de laboratório!

não tivemos com a vida juntos =/
mtas saudades!