domingo, fevereiro 22, 2009

Dúvida

ou O menu da Santa Ceia

Quando fui pesquisar a filmografia do americano John Patrick Shanley, não achei entre os poucos filmes do diretor algum que eu realmente conhecesse, mesmo tendo ouvido falar de um ou outro. A exceção foi o primeiro filme dele, Feitiço da Lua (Moonstruck, 1987), sucesso de público, crítica e premiação. No Oscar daquele ano, a película apareceu no telão do Kodak Theatre seis vezes, das quais 3 foram bem-sucedidas. Além da melhor atriz Cher e da melhor atriz coadjuvante Olympia Dukakis, o próprio Shanley subiu no palco para receber a estatueta, por melhor roteiro original. O filme foi um dos que aumentou a minha coleção de DVDs no último natal, mas ainda não tive tempo de ver, para comprovar minhas suspeitas (por ter lido o artigo interessante sobre ele na wikipedia e a sinopse na capa) de que trata-se de um trabalho muito legal.

Sendo assim, comecei do fim a obra de Shanley, cuja carreira no teatro tem apenas 5 anos a mais do que no cinema, mas uma sugestiva e maior expressividade. Feliz descoberta. Dúvida (Doubt, 2008), aparece entre os indicados do prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas como o meu preferido (não vou nem dizer que sua duração tímida de 104 minutos me agradou). Quase imperceptível (mesmo tendo a despretensão de incluir no elenco os oscarizados Meryl Streep e Phillip Seymour Hoffman) diante de gigantes como O curioso caso de Benjamin Button (The curious case of Benjamin Button, 2008), controversos como O Leitor (The Reader, 2008) e azarões como Quem quer ser um milionário? (Slumdog Millionaire, 2008), Dúvida chega pra ficar e deixar suas marcas.

O tema, um padre supostamente pedófilo, não é original, mas é atual. A questão, porém, é outra. Para penetrar camadas semânticas mais profundas, é preciso entender que o filme se passa no Bronx, na Nova York dos anos 60. O cenário é um colégio de freiras que recentemente incluiu em seu corpo de alunos o primeiro negro: sinal de mudança dos tempos, tolerância. O preconceito racial surge como uma temática subliminar secundária, pra realçar ainda mais outras questões éticas que também merecem espaço. E não é só o envolvimento suspeito (mas não confirmado) entre um padre e o tal garoto afro-americano que cria dilemas morais, mas sim assuntos como fé, tolerância e, é claro, dúvida. Irmã Aloysius, personagem da inadjetivável Meryl Streep, começa a acreditar que as relações entre o padre Flynn e Donald Miller passam de qualquer limite aceitável. Ela insiste, bate o pé, sustenta até o fim a idéia, mesmo sem ter nenhuma prova. Seus motivos para crer nisso superam mesmo os motivos igualmente fortes que tem para suspender suas suspeitas. E, no meio disso, vemos crescer o sofrimento da irmã James (Amy Adams), que foi a primeira a incitar a dúvida na cabeça engenhosa da outra freira, e depois de um tempo se arrepende e se sufoca em dúvidas, embora afirm que acredita na versão do padre Flynn do caso.

A dúvida que corrói, num contexto em que os votos religiosos tornam as pessoas mais reservadas em relação à fofoca e à falastrice é o que chama atenção no enredo. Numa direção oposta, temos na irmã Aloysius a única personagem que, a princípio, só tem certezas. Assim como a fé dogmática que tem, ela não precisa de provas para ter absoluta convicção do crime do padre. Imagine uma mulher dona de uma teimosia quase irritante, obstinada e austera, forte e absoluta. Agora, imagine que quem está interpretando essa ilha de certezas no meio de um poço de dúvidas é Meryl Streep!

A entrada da atriz no filme nos lembra O diabo veste Prada (Devil wears Prada, 2006). Somos introduzidos a um par de pés caminhando sutilmente pelo corredor de uma igreja enquanto ouvimos um sermão. Apesar de não fazer barulho, sentimos a presença pesada de alguém. O rosto de Meryl Streep se revela para xingar um menino que está desatento à fala do padre. A desatenção pode nos levar a associar instintivamente a Irmã Aloysius a Miranda Priestly. Ao longo do filme, até que podemos forçar algumas semelhanças posteriores, como raríssimos (ênfase no íssimos) momentos de fraqueza, dos quais quase não posso falar sem que todo o enredo seja desvendado. Mas desta vez, a personagem de Streep tem uma força distinta. Uma crença praticamente inabalável e uma obstinação que intimida. E por sobre todas essas qualidades, um senso de humor inacreditável. Preste atenção no que ela fala, nas piadas que faz, nos detalhes incríveis iluminados pela câmera durante suas cenas mais tensas. É genial o trabalho de direção, mesmo com um enredo simples.

A câmera oblíqua está presente em cenas escolhidas a dedo, como que deslocando e perturbando o olhar, seja nos diálogos corriqueiros e aparentemente banais (você quase não verá falas banais em Dúvida), seja nos momentos de tensão, como na cena em que Irmã Aloysius e Irmã James prendem o padre Flynn numa arapuca mental quando apresentam pela primeira vez suas suspeitas em relação ao comportamento do pároco. O filme caminha na corda bamba entre a suspeita e a certeza, é recheado de diálogos com rodeios, como uma eterna conversa tensa em que não se chega nunca ao assunto principal, embora os interlocutores já saibam desde o início exatamente sobre o que debatem...

Entrando no mérito da atuação, se temos na interpretação de Kate Winslet em O Leitor um prato cheio, Dúvida é um verdadeiro banquete. A entrada é Phillip Seymour Hoffman, plácido e imaculado na figura do Padre Flynn. O prato principal é certamente Meryl Streep e suas tiradas capciosas, com uma pitada apimentada e quase inconveniente de humor negro. Toda a refeição desce mais fácil com os goles de Amy Adams. A eterna Encantada (Enchanted, 2006) é a personagem que mais muda durante o filme. De freira inocente, sensível e carinhosa, torna-se sem querer, pelo simples fato de estar bem no meio do fogo cruzado entre Irmã Aloysius e Padre Flynn, uma pessoa desaçucarada. De sobremesa, temos uma agradabilíssima surpresa: uma aparição de 5 minutos que faz toda a diferença. Viola Davis e sua personagem, Sra. Miller, mãe de Donald, o garoto, é uma presença agridoce com uma cobertura meio-amarga, e rendeu à atriz uma indicação lisonjeira ao prêmio de Melhor atriz coadjuvante.

Obviamente, no caminho da adaptação entre a peça Dúvida: uma parábola, do próprio Shanley, e a produção cinematográfica, algo se perdeu. Talvez pensemos nisso de maneira mais atenta quando prestamos atenção no garoto que divide a tarefa de coroinha com Donald Miller. Intrigante e enigmático. Realmente algo deve ter me passado despercebido porque tudo o que eu concluí sobre este personagem - certamente significante - foram interrogações. Mas - com o perdão do trocadilho infame e inevitável - sem dúvidas, este filme nem precisa de Oscars (como imagino que não deva ganhar nada mesmo, assim como foi esnobado pelo Globo de Ouro em todas as 5 categorias a que concorreu) para que eu o inclua na lista de must-sees do ano.

Doubt, 2008
Direção: John Patrick Shanley
Roteiro: John Patrick Shanley, baseado numa peça do mesmo autor
Duração: 104 minutos
Elenco: Meryl Streep, Phillip Seymour Hoffman, Amy Adams, Viola Davis
Indicações ao Oscar:
Melhor roteiro adaptado
Melhor atriz (Meryl Streep)
Melhor atriz coadjuvante (Amy Adams)
Melhor atriz coadjuvante (Viola Davis)
Melhor ator coadjuvante (Phillip Seymour Hoffman)

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